Conflito Russo-Ucraniano – racionalidade vs. eficácia da propaganda

Achas à Fogueira @
Março de 2024

 

I. Nota Introdutória

O conflito russo-ucraniano (C_RU) causou já uma composta crise internacional energética e humanitária e a destruição de infraestruturas económicas e sociais, acentuando-se, globalmente, as crises económica e social, induzidas pela pandemia da COVID-19.

De modo a convencer o público mundial da legitimidade das razões respectivas, as partes beligerantes conduzem uma enorme campanha de propaganda de guerra – que é repetida tantas vezes quantas as tidas como necessárias –, culpabilizando-se, reciprocamente.

O presente artigo questiona a eficácia de tal propaganda quando é destinada para um público-alvo de indivíduos racionais ou de racionalidade limitada, por um lado, e advoga o fim negociado do conflito, por outro.

Além desta Nota Introdutória, o presente artigo tem mais três secções. A segunda secção sintetiza os efeitos e a percepção das causas do C_RU, bem como a propaganda das partes beligerantes, directas ou não.

A terceira secção aborda o quadro analítico universal para tomada de decisões racionais, questionando, nesse contexto, a eficácia da propaganda de guerra.

Finalmente, a quarta secção conclui que a propaganda parece ser ineficaz para a alteração do estado de opinião do público-alvo e defende o fim negociado do conflito, para pôr-se termo aos efeitos já em produção e prevenir-se a materialização dos riscos globais de o tornar nuclear à escala mundial, preservando-se, assim, a espécie humana.

 

II. Efeitos do Conflito, Percepção das Causas e Propaganda

Em processo de recuperação dos efeitos da Covid-19, o mundo testemunha desde 24 de Fevereiro de 2022, o C_RU, alegadamente desencadeado pela invasão russa ao território ucraniano.

Do C_RU resultaram já uma composta crise internacional energética (aumento dos preços do petróleo bruto e dos seus derivados) e humanitária (deslocados, refugiados, feridos e mortos)[1] bem como a destruição de infraestruturas económicas e sociais, acentuando-se, globalmente, as crises económica (crescimento negativo do produto bruto e aumento da inflação)[2] e social (aumentos da desigualdade económica e da pobreza), [3] induzidas pela pandemia da COVID-19.

Assim, o C_RU constitui, hoje, a principal ameaça e risco para o desenvolvimento económico-social mundial e para a sobrevivência da espécie humana, dado o seu elevado potencial para degenerar-se num conflito nuclear.

Tido por conceituados analistas como uma guerra, por procuração passada para a Ucrânia, entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), [4] liderada pelos Estados Unidos da América (EUA) – que defendem a sua hegemonia económica consagrada pelos Acordos de Bretton Woods (BW), New Hampshire, de 1944 –, e a Rússia, o C_RU determinou, na perspectiva das suas natureza e causas, uma gigantesca campanha de propaganda, que pode ser caracterizada como se faz nos dois parágrafos subsequentes.

Por um lado, a OTAN considera que a guerra resulta da invasão não provocada da Ucrânia, um país soberano, pela Rússia, que, nesse contexto, violou a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e comete crimes contra a humanidade. Sempre que possível, esses pretensos crimes são ilustrados com imagens repetidas, pelos media ocidentais, infinitas vezes.

Por outro lado, para a Rússia, os ucranianos liderados por neonazis bandeiristas começaram, efectivamente, em 2014, a guerra, por um lado, ao implementarem um plano de exterminação das populações do Donbass, maioritariamente de origem russa, e, por outro lado, ao pretenderem tornar-se membros da OTAN.[5]

De facto, através de jornalistas e comentadores – profissionais dos mais diversos domínios da vida económica, militar, política e social, que são fazedores de opinião –, bem como de decisores de política ao mais alto nível dos países e instituições interessadas, os mass media ocidentais e russos veiculam, com elevada regularidade, pontos de vista que legitimam as razões de um ou de outro dos beligerantes, almejando a sua victória.

Em síntese, a cobertura do C_RU por esses media, no âmbito da propaganda de guerra, é caracterizada por: censura, quando são proscritas opiniões críticas de qualquer das partes e que as responsabilizem; manipulação maniqueísta, porque adoptam códigos de dupla-moral, por exemplo, quando divulgam e condenam atrocidades contra civis de um dos beligerantes, mas mantêm-se silenciosos em relação às do outro; ocultação ou negação da verdade, como, por exemplo, nos casos das destruições dos gasodutos Nord Stream 1 e 2, em 26 de Setembro de 2022, e da barragem de Nova Karkova, em 6 de Junho de 2023; e russofobia em contraposição à ucranofobia.

Essa propaganda de guerra parece não exaurir-se, visto que é repetida tantas vezes quantas as tidas como necessárias, de modo a convencer o público mundial da legitimidade das razões respectivas. Mas terão as partes êxito nessa propaganda, levando o público-alvo a escolher algum dos lados? Esta questão – chamemo-la primitiva –, que será respondida na subsecção 3.3, por sua vez, coloca as seguintes duas questões derivadas: qual é o público-alvo? como é que o agente representativo desse público-alvo toma as suas decisões?

Para o nosso contexto, a resposta à primeira questão derivada é: constituem público-alvo todos os membros da população mundial com acesso à informação e dotados de capacidade para a sua análise objectiva. Sob uma forte e simplificadora restrição, pode incluir-se nesse conjunto todos os indivíduos com educação intermédia (secundária) e avançada (superior).

Assim, através de indicadores quantitativos dos níveis de escolaridade e de acesso à informação da população mundial, pode-se identificar e quantificar o público-alvo, em dois momentos, concluindo-se que, em 2022, seria integrado por cerca de 1 314 013 640 indivíduos com acesso à Internet e, consequentemente, à informação variada e de qualidade.[6] Esses indivíduos repartiam-se em 38%, para o Ocidente Alargado,[7] e 62%, para o resto do mundo.

Como resposta à segunda questão derivada, concordar-se-á que o agente representativo desse público-alvo julgará o conflito no contexto do quadro analítico universal da caracterização de um qualquer problema, com níveis mínimos de cientificidade, que, recorde-se, incorpora, de modo sistémico, a identificação essencial das respectivas causas, efeitos e intrínsecas soluções.

 

III. Quadro Analítico Universal vs. Eficácia da Propaganda

À luz do quadro analítico universal, a caracterização do conflito pode ocorrer sob os princípios tanto da racionalidade como da racionalidade limitada. O princípio da racionalidade é o modelo-padrão, em que um agente racional dotado de capacidade cognitiva recolhe e analisa todos os dados e informações relevantes de um problema e decide de forma óptima.

Então, o princípio da racionalidade limitada (bounded rationality, na língua de Shakespeare) é considerado como um desvio do modelo padrão de tomada de decisão, que tem as duas seguintes propriedades. Primeiro, os indivíduos são tidos como portadores de limitadas capacidades cognitivas que, por sua vez, restringem as suas capacidades para análise e resolução de problemas; segundo, algumas vezes, os indivíduos tomam decisões que não satisfazem os seus interesses, no longo prazo.

 

3.1 Caracterização sob o princípio da racionalidade

Decerto, o indivíduo representativo do público-alvo, sem quaisquer interesses ocultos e com acesso a dados e informações fiáveis, adoptará o quadro analítico universal acima referido, para a essencial caracterização do C_RU, arrolará e escrutinará os mais relevantes factos, segregando-os, de acordo com a sua natureza, pelas categorias de causas e efeitos, bem como equacionará as soluções.

 

3.1.1 Causas

 Assim, integrariam as causas, os factos económicos, geopolíticos, legais e militares descritos a seguir.

II Guerra Mundial (GM), alianças militares e fronteiras da OTAN. Da II GM (1939-1945) surgiram duas superpotências mundiais: os EUA e a União Soviética (US). Apesar dos esforços para a garantia da paz mundial, a deterioração das relações entre Aliados [EUA, França e Inglaterra, de um lado, e US, doutro] levou à constituição de duas alianças militares internacionais: a OTAN e o Pacto de Varsóvia. Esta última, agrupando a US e os países da Europa Central e do Leste, foi criada, em 1955, para contrapor-se à OTAN.

Com o colapso do império soviético, em 1991, foi extinto o Pacto de Varsóvia, tendo Mikhail Gorbachev obtido, do então secretário de Estado norte-americano, James Baker, o compromisso da OTAN não avançar “nem uma polegada em direção ao Leste da Europa”. Isto é, a fronteira oriental da OTAN seria a linha Oder-Neisse (fronteira germano-polaca). Porém, contrariando-se esse compromisso, ao incorporar vários países do leste europeu, a fronteira oriental da OTAN tornou-se, praticamente, adjacente à Rússia. Diz-se que a hostilidade ocidental para com o seu país forçou as autoridades russas a adoptarem uma política externa “menos aquiescente, menos conivente e mais independente”.[8]

Sistema monetário e financeiro internacional pós-II GM vs. hegemonia dos EUA. A Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas (NU), realizada de 1 a 2 Julho de 1944, em BW, criou as Instituições Financeiras Internacionais (IFI) – o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial – BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) –, e estabeleceu o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio,[9] para a governação económica global, de modo a prevenir a reedição da grande depressão económica dos anos 20 do século passado, bem como instituiu um sistema monetário e financeiro internacional, tendo o dólar americano, convertível em ouro à uma taxa fixa (o chamado padrão dólar-ouro), como moeda de referência das transacções internacionais. Entretanto, essa taxa fixa foi substituída pela flutuante, em 1971.

Assim, por um lado, transformou-se o Fed – banco central dos EUA –, no banco emissor da moeda de transacções internacionais e de reserva para os bancos centrais de todo o mundo e, por outro, universalizou-se o poder de seignorage do governo americano.

Importantes consequências dessas propriedades do Fed e da economia americana são as suas capacidades quase ilimitada de endividamento, na sua própria moeda – sem sofrer os efeitos da sua amortização e stress do seu elevadíssimo nível[10] –, e de financiamento de quase sistemáticos défices da balança de pagamentos. Deste modo, os EUA dotam-se de capacidade e influência monetárias internacionais que reforçam os seus poderes económico, militar e político; estes, por sua vez, retroalimentam a hegemonia do dólar.

Acordo de Minski de 2014 e ataque Ucraniano às populações Russas do Donbass. O Acordo de Minski II, de 5 de Setembro de 2014 – assinado por representantes da Organização da Segurança e Cooperação da Europa, das repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, da Rússia e da Ucrânia –, que havia sido endossado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como negociações subsequentes preconizavam a:

  • A Ucrânia neutra e fora da OTAN;
  • A Crimeia como parte integrante da Rússia; e
  • A autonomia da região do Donbass.

A rejeição pela Ucrânia desses termos de um eventual Acordo – cuja viabilidade o Presidente Volodimyr Zelensky reconhecera, em Março de 2022, junto dos intermediários israelitas (o Primeiro-ministro, Naftali Bennett, em particular) e turcos –, bem como o ataque às populações russas do Donbass, terão determinado o início da “operação militar especial” russa, a 24 de Fevereiro de 2022.[11]

Haverá, aqui, uma relevante questão de falha do direito internacional, como, a seguir, é abordada.

Direito internacional e a eficácia da ONU. As posições do Secretário-geral da ONU (SG-ONU), Eng.º António Guterres, e do Presidente Vladimir Putin reflectem os pontos de vista discordantes do Ocidente Alargado e da Rússia, respectivamente, sobre o respeito do direito internacional. De acordo com o SG-ONU, a Carta das NU condena a invasão de um país soberano. O Presidente Putin contra-argumenta que, após a proclamação da sua independência, as populações do Donbass haviam pedido a ajuda russa contra a agressão da Ucrânia. Então, essa ajuda estava a ser-lhes provida, nos termos do artigo 51.º da Carta das NU e, também, da decisão do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) sobre a independência do Kosovo,[12] que nenhum Estado rejeitara.

Estas argumentação e contra-argumentação constituem um caso particular de interpretação diversa e incumprimento das resoluções das NU e das deliberações do TIJ, que é expressão de um mais geral e grave problema da ausência de poder vinculativo e coercivo das decisões daqueles órgãos do sistema internacional de justiça.

De facto, nos termos da Carta das NU, as decisões do TIJ devem ser tornadas vinculativas pelo Conselho de Segurança das NU (CS-NU), que detém o poder coercivo; entretanto, o poder de veto dos países membros permanentes do CS-NU – frequentemente utilizado em defesa dos seus próprios interesses –, impede o exercício de tal poder coercivo para impor, de modo sancionatório, o cumprimento das decisões do TIJ. Em consequência, enfraquece-se a autoridade do TIJ e do sistema internacional de justiça, reduz-se a eficácia da ONU e põe-se em risco a paz e segurança internacionais.[13]

Por essas limitações, vários decisores políticos advogam a reforma do sistema das NU, em geral, e do CS-NU, em particular.

Note-se que a violação do direito internacional e a ameaça russa à democracia e aos valores ocidentais são apresentados, pelo Ocidente Alargado, como as principais razões do conflito, apesar de, com elevada frequência, os seus decisores de política e fazedores de opinião referirem, claramente, que, nesse contexto, têm como objectivo fundamental, travar a ascensão da China – considerada como o verdadeiro inimigo –, e como objectivo instrumental, enfraquecer a Rússia.

 

3.1.2Efeitos

Os efeitos do conflito repartem-se por dois conjuntos: o dos já observados e o dos potenciais. No primeiro, além da crise internacional energética e humanitária e a destruição de infraestruturas, integram-se os seguintes factos: sanções contra a Rússia e a reacção gerada; e aumento da tensão político-militar entre as superpotências nucleares, nomeadamente, a China, os EUA e a Rússia.

Podem identificar-se, como efeitos potenciais – ou, por outras palavras, riscos globais –, os seguintes: eclodir de um conflito mundial, com elevado potencial para tornar-se nuclear; e extinção da espécie humana.

Descrevem-se, a seguir, alguns desses efeitos, observando que, entre si, pode existir forte correlação – e.g., aumento da tensão político-militar entre as superpotências nucleares vs. potencial de conflito nuclear e extinção da espécie humana –, que os torna, caso-a-caso, altamente sensíveis, na perspectiva da materialização dos riscos globais.

Sanções contra a Rússia e a reacção gerada. Grosso modo, no período de 25 de Fevereiro a 24 de Março de 2022, à Rússia foram impostas as seguintes sanções: suspensão, de todos os bancos russos, do sistema financeiro internacional e do SWIFT; suspensão do país, do BM e do FMI; proibição de emissões dos meios de comunicação social russos [Russia Today (RT) e Sputnik]; proibição, pelos EUA e UE, de importação de bens de luxo, carvão, petróleo bruto e gás russos, bem como de produtos derivados do petróleo bruto; congelamento das suas reservas internacionais (depósitos no exterior e títulos estrangeiros de dívidas governamentais e privadas, estimados em cerca de 300 bilhões de dólares americanos).

Estimava-se que a interrupção ou a redução dos fluxos comerciais, económicos e financeiros resultantes desse envelope de sanções determinaria, em 2022, na Rússia, a redução de 10 a 12% do PIB, a duplicação da taxa de desemprego e o aumento da taxa de inflação para um intervalo de 20 a 25%, dentre outros efeitos. Entretanto, de acordo com o FMI, efectivamente, esses indicadores registaram, em 2022, os valores de -2,1%, 3,9% – longe de duplicar-se, pois fora de 4,8%, em 2021 –, e de 13,8%, respectivamente, o que reflecte a relativa ineficácia das sanções, pelo menos no curto prazo.[14]

Em resposta à imposição dessas sanções, os BRICS – de que a Rússia é membro –, que pugnam por um mundo multipolar e rejeitam as regras de condicionalidade das IFI_BW (isto é, exigência de implementação de reformas estruturais, económicas ou políticas, como pré-condições para concessão de assistência financeira), propuseram-se criar um sistema monetário e financeiro alternativo.[15] Foram, também, fortalecidas as relações sino-russas, através do projecto comum da Grande Associação Euro-asiática Global, no contexto da Organização de Cooperação de Shanghai,[16] que preconiza desenvolver a região como um todo, à luz dos princípios da inclusão, igualdade em matéria de soberania, respeito pela identidade cultural e sociopolítica e disponibilidade para acolher outros membros.

Observa-se, assim, que as sanções e a reacção por si gerada produzem o retrocesso da globalização e a fragmentação da economia global, que, por sua vez, resultarão, com certeza, em perdas de eficiência económica e de bem-estar globais.

Risco de conflito nuclear e de extinção da espécie humana. No que diz respeito à extinção da espécie humana, o Relógio do Apocalipse[17] foi movido para 90 segundos antes da meia-noite – momento da destruição da humanidade  por uma guerra nuclear –, em 24 de Janeiro de 2023, o mais próximo que já esteve desse marco, desde sua criação. Esse ajuste resultou, em grande medida, do risco de conflito nuclear, que surgiu com o C_RU, apesar de reflectir, também, factores tais como as mudanças climáticas, as ameaças biológicas (como a COVID-19), e os riscos associados à desinformação e às tecnologias disruptivas. A extinção da humanidade ocorreria se, além dos efeitos directos da explosão nuclear e do calor produzido, se materializassem, por exemplo, os riscos de inverno nuclear.

 

3.1.3 Soluções

Reconheceria, também, o nosso agente representativo, que alguns analistas vaticinam que uma victória de Kiev seria um duro golpe contra a Rússia, com potencial para desagregar a respectiva Federação, enquanto um desfecho contrário levaria ao fim da OTAN. Ipso facto, para os beligerantes não é admissível a victória do inimigo. Então, neste contexto, qual será a solução que, por um lado, ponha fim à continuação dos efeitos já produzidos, e, sobretudo, por outro, impeça os efeitos potenciais – ou a materialização dos riscos globais –, acima descritos?

Com o pressuposto da impossibilidade da derrota de qualquer dos contendores, a solução só pode encontrar-se através da negociação de um acordo de paz cujas bases seriam:

  • A Crimeia como parte da Rússia, que continue a abrigar a frota naval russa do Mar Negro, tal como vem ocorrendo desde 1783;
  • Uma solução territorial prática para o Donbass, e.g., divisão territorial e sua autonomia governativa;
  • Retirada russa das demais partes ocupadas do território da Ucrânia;
  • A Ucrânia como país não-membro da OTAN;
  • A garantia de efectiva segurança das fronteiras comuns da Rússia e da Ucrânia.

Com essa proposta de solução – que pode prevenir a materialização dos riscos globais e preservar o ambiente de paz, crescimento económico e desenvolvimento humano mundiais –, o nosso racional agente representativo concluiria a análise e avaliação essenciais do C_RU.

 

3.2 Caracterização sob o princípio da racionalidade limitada

Dotado de capacidade cognitiva, o agente representativo do público-alvo caracterizará o C_RU, igualmente, identificando e analisando causas e efeitos, bem como prescrevendo soluções. Todavia, aqui, essa caracterização ocorrerá sob princípios algo dogmáticos – e.g., autocracia vs. democracia, liberdade vs. opressão, ordem internacional assente na lei e regras vs. ordem internacional que desrespeita a lei e as regras, etc. –, dado o carácter determinante dos seus interesses próprios.

A adopção de princípios dogmáticos desviam o agente representativo do modelo-padrão para o alternativo da limitada racionalidade – com ênfase na sua segunda propriedade –, para caracterizar o conflito. Neste contexto analítico, o nosso agente representativo toma decisões para a sua própria satisfação, sem, entretanto, as optimizar, mesmo que tenha ao seu alcance todos os dados e informações relevantes.

Entende-se, assim, que, sob este princípio, mesmo utilizando o quadro analítico universal, o agente representativo conclua e decida de modo diverso do agente representativo da subsecção 3.1. Isto é, advogará negociações de paz, sim, mas condicionadas à derrota de um ou de outro dos beligerantes, dada a defesa dos seus interesses próprios.

Assim parece ser, porque a adopção de princípios algo dogmáticos, ditados pela defesa de interesses próprios, determina, por um lado, uma visão enviesada das causas essenciais do conflito – e.g., desvalorizando-se, totalmente, a deslocação oriental da fronteira da OTAN, atribuição de peso total ao direito internacional da soberania das fronteiras nacionais –, e, por outro, a subestimação dos riscos globais que lhe estão associados.

Quem é, aqui, o nosso agente representativo? Podemos considerar, como esse agente representativo, o típico jornalista ou comentador dos media ocidentais e russos, que cobre, do ponto de vista jornalístico, o C_RU, tal como se descreve na secção II.[18]

 

3.3 Eficácia da propaganda

Mas, se decidirem tal como se descreve nas subsecções 3.1 e 3.2, os indivíduos do nosso público-alvo escolherão algum dos lados do conflito? Adoptarão, ou não, sobre o conflito posições relativamente independentes da propaganda dos media?

Entendo que, por um lado, sob o princípio da racionalidade, como corolário, o nosso agente representativo,[19] sem interesses ocultos, amante da paz e do desenvolvimento humano universais, tendo como pressuposto a inquestionável necessidade da preservação da espécie humana, num contexto internacional regulado por um direito internacional com poder coercivo e um sistema das NU eficaz, teria uma escolha simples: fim do conflito, através de um acordo negociado, evitando prolongá-lo com o propósito de encontrar-se um vencedor.

Assim, indivíduos racionais do público-alvo seriam insensíveis à propaganda de guerra, neutros e advogados de uma paz negociada. A propaganda seria totalmente ineficaz.

Por outro lado, sob o princípio da racionalidade limitada – de modo consistente com a decisão do nosso agente representativo –, pensamos que grande parte do público-alvo tenderá a replicar as opiniões dos respectivos fazedores de opinião e decisores de política. Assim, teríamos os nossos 1 935 218 910 indivíduos, com educação intermédia e avançada, muito provavelmente, distribuídos do seguinte modo: 32% a favor dos argumentos do Ocidente Alargado; 68% (China e Sul Global) a favor dos argumentos da Rússia e, eventualmente, neutros.[20]

Assim, uma vez mais, a propaganda de guerra é algo ineficaz, visto que não é capaz de alterar as posições dos indivíduos do público-alvo que se ancoram nos seus próprios interesses. E estes são, em última instância, os mesmos dos seus decisores de política ou governos.[21]

 

IV. Nota Conclusiva

Para além de ter já resultado numa composta crise internacional energética e humanitária e na destruição de infraestruturas económicas e sociais, o C_RU determinou uma enorme campanha de propaganda de guerra, através da qual as partes beligerantes culpabilizam-se, reciprocamente, de modo a convencerem o público mundial da legitimidade das razões respectivas.

O presente artigo questiona a eficácia de tal propaganda quando é destinada para um público-alvo de indivíduos racionais, que são capazes de caracterizar, essencialmente, o conflito, usando o quadro analítico universal de caracterização de um problema, com níveis mínimos de cientificidade, quer sob o princípio da racionalidade quer sob o outro da racionalidade limitada.

Parece consistente com esses quadros de análise que, por um lado, o indivíduo seja neutro, no primeiro caso, e que, por outro, mantenha o alinhamento com um dos beligerantes, em função dos respectivos interesses próprios, no segundo caso. Como corolário, essa propaganda – que, à partida, parece tratar todo o público-alvo como um conjunto de pessoas ingénuas e irracionais –, é totalmente ineficaz.

 

Referências Bibliográficas

  1. Gomes, Gabriel N. Lopes, A Relação Moeda-Estado: A Importância do Dólar no Processo de Consolidação dos EUA como Potência, Universidade Sãojudas, São Paulo, 2017
  2. Kharas, H. and Dooley, M., Extreme Poverty in the Time of COVID-19, Brookings Institution, 24 de Maio de 2021
  3. Meyssan, Thierry, El projecto militar de Estados Unidos para el Mundo, Voltairenet.org, 22 de Agosto de 2017
  4. Meyssan, Thierry, El Nuevo Orden Mundial que nos preparan com el pretexto de la guerra en Ucrania, Voltairenet.org, 29 de Março de 2022
  5. Meyssan, Thierry, Propaganda de guerra bajo una nueva forma, Voltairenet.org, 5 de Abril de 2022
  6. Meyssan, Thierry, El fin de la dominación occidental, Voltairenet.org, 19 de Abril de 2022
  7. Meyssan, Thierry, Ucrania y la Segunda Guerra Mundial como conflicto inconcluso, Voltairenet.org, 26 de Abril de 2022
  8. Meyssan, Thierry, La esperanza de Washington: prolongar la guerra en Ucrania para recobrar su status de hiperpotencia, Voltairenet.org, 3 de Maio de 2022
  9. NATO´s Russian Submarine Problem, World in Brief, The Bulletin by Newsweek, 13 de Maio de 2023
  10. Russian Opposition’s Gary Kasparov Predicts Collapse or Russian Empire, World in Brief, The Bulletin by Newsweek, 20 de Maio de 2023
  11. Sachs, Jeffrey D., A Nova Economia Mundial – O que precisa a Ucrânia de aprender com o Afeganistão, Negócios, 2 de Março de 2023
  12. Sent, Esther-Mirjan, Rationality and bounded rationality: you can’t have one without the other, The European Journal of the History of Economics Thought, 24 de Outubro de 2018
  13. Stulajter, Matus, Problem of Enforcement of an International Law – Analysis of Law Enforcement Mechanisms of the United Nations and The World Trade Organization, Journal of Modern Science, 2017
  14. Taibo, Carlos, Chaves para entender a Guerra entre a Rússia e a Ucrânia, Dissertação – vídeo, Abril de 2022

 

@ “Achas à Fogueira” é um compartimento da secção “Artigos de Opinião” – sucessor de um espaço no Jornal de Angola, com a mesma designação, inaugurado no já distante ano 2 000 –, em que residem textos sobre temas controversos, económica, política e socialmente relevantes, abordados, com alguma profundidade, para a construção de consenso na busca de soluções essenciais aos problemas que lhes são subjacentes. Estes textos estimulam a contínua e necessária discussão, do mesmo modo que as achas lançadas a uma fogueira lhe alimentam a chama.

[1] Apesar de dúvidas sobre a sua fiabilidade, dadas as suas fontes, registaram-se os seguintes números de feridos e mortos militares: 383 000 ucranianos, até Dezembro de 2023, de acordo com o Ministro da Defesa da Rússia, Sergei Shoigu; 405 000 russos, até Fevereiro de 2024, de acordo com o Ministério da Defesa da Ucrânia. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados [in UNHCR Europe situations: Data and trends – Arrivals and displaced populations (December 2023)], em Dezembro de 2023, contavam-se 3 700 000 deslocados internos e 5 974 800 refugiados.

[2] As taxas de crescimento do produto interno bruto mundial foram de -2,8%, 6,3% e 3,4%, nos anos de 2020, 2021 e 2022; nesses mesmos anos, as taxas da inflação mundial foram de 3,2%, 4,7% e 8,7%.

[3] A população mundial em extrema pobreza (vivendo com menos de 1,9 dólares americanos por dia) passou de 1,9 biliões (em 1990) para 648 milhões, em 2019, e tendia para 537 milhões, em 2030; porém, a COVID-19 interrompeu essa tendência, ao determinar o crescimento dessa população em cerca de 97,1 milhões, de 2019 a 2020.

[4] Como aliança política e militar, a OTAN foi fundada em 1949, tendo como principal objectivo impedir a concretização da ameaça de expansão soviética na Europa, após a Segunda Guerra Mundial. Os seus 12 membros fundadores são: EUA, Reino Unido, Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega e Portugal.

[5] Na perspectiva da Rússia, a concretização desta pretensão equivaleria ao cruzar de uma das suas linhas vermelhas, visto que poria em grave risco as vitais segurança e soberania nacionais russas.

[6] No primeiro momento, com recurso a estatísticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a estrutura da força de trabalho por níveis de educação, constatámos que, em 2021, para 92 países com dados disponíveis, da força de trabalho total (4 200 169 530 indivíduos), 46% (1 935 218 910 indivíduos) possuía educação intermédia e avançada. O Ocidente Alargado detinha 18% e 32% desses totais, respectivamente.

De facto, de acordo com a OIT, em 2021, de uma força de trabalho total de 3 059 097 970 indivíduos relativos a 91 países – que não incluíam a China, por não ter, nesse ano, informação disponível –, 50% (1 515 494 890 indivíduos) possuía educação intermédia e avançada. Nesse mesmo ano, o Ocidente Alargado (ver a nota de rodapé seguinte) tinha 643 696 060 indivíduos com educação intermédia e avançada, isto é, 77% de uma força de trabalho total de 839 455 740 indivíduos.

Assumindo que a taxa de crescimento da força de trabalho total e da respectiva proporção com educação intermédia e avançada não é, globalmente, significativa, no período de um único ano, transferimos, para 2021, os dados que a China tinha disponíveis para o ano de 2020 e excluímos a Turquia do Ocidente Alargado. Com estas modificações, em síntese, obtivemos os dados para os 92 países, no ano de 2021.

No segundo momento, assumimos que, no mundo contemporâneo das tecnologias de informação e comunicação, TIC’s, a taxa de penetração da Internet pode ser tida como uma proxy para o acesso à informação. Ora, sendo essa taxa de 67,9%, em termos médios anuais, em 2022, circunscrevendo-nos aos indivíduos com formação intermédia e avançada, teríamos 1 314 013 640 indivíduos com acesso à Internet e, consequentemente, à informação variada e de qualidade. Adopta-se, aqui, o pressuposto do pouco significativo crescimento da população com educação intermédia e avançada, num só ano, acima referido. Este vasto conjunto de indivíduos é, então, o público-alvo mundial quantificado da propaganda de guerra; este reparte-se, igualmente, em 38%, para o Ocidente Alargado, e 62%, para o resto do mundo.

[7] Como conceito operacional, no Ocidente Alargado incluímos os países membros da OTAN e da UE, a Austrália, a Nova Zelândia, e a Ucrânia.

[8] Ao analisar as causas do C_RU, Carlos Taibo considera que os factos das últimas três décadas, que se descrevem a seguir, não deixaram outra alternativa à adopção, pela Rússia, de uma política externa “menos aquiescente, menos conivente e mais independente”. É que, sem obter qualquer benefício do ocidente, a Rússia apoiou a política americana contra o terrorismo – após o ataque d’ Al Qaeda às torres gémeas de Nova Iorque, em 11 de Setembro de 2001 –, e a invasão do Afeganistão pelos EUA, bem como remeteu-se a um silêncio sepulcral por ocasião da invasão do Iraque.

Entretanto, contra essa atitude cooperativa da Rússia – além de promoverem e efectivarem a expansão oriental da OTAN –, os EUA: apoiaram as chamadas revoluções coloridas e a instalação de regimes hostis à Rússia, na Geórgia, no Quirguistão e na Ucrânia; mantiveram o seu programa “Guerra das Estrelas” ou do escudo antimísseis, que se propunha reduzir a capacidade dissuasora dos arsenais nucleares chineses e russos; e, finalmente, preservaram as bases militares, inicialmente provisórias, no Cáucaso e na Ásia Central.

[9] GATT – General Agreement on Tariffs and Trade), que viria a ser substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995.

[10] O rácio da dívida dos EUA sobre o PIB era de 121,6%, em Junho de 2023 – um dos mais altos do mundo –, tendo o seu valor médio trimestral sido de 60,7%, no período de Março de 1969 a Junho de 2023.

[11] Note-se que, segundo alguns analistas, a abordagem do C_RU, pelos EUA, ignora que: (i), a Ucrânia tem uma profunda divisão étnico-política (parte ocidental ocupada por nacionalistas, que odeiam a Rússia, e parte oriental e Crimeia, povoadas por populações de origem russa); e, (ii), que a expansão da OTAN à Ucrânia é uma linha vermelha russa, tal como foi já acima qualificada.

[12] Segundo a qual, o direito dos povos à sua autodeterminação pode aplicar-se mesmo sem o consentimento da autoridade central a que estejam submetidos.

[13] Em realidade, a interpretação e respeito do direito internacional gera atitudes de dupla-moral e duplos-padrões de julgamento dos factos que, dentre outros efeitos, prejudicam o seu enforcement e reduzem a eficácia da ONU. Um exemplo desses padrões-duplos é: os EUA aceitarem o direito à autodeterminação dos povos, no caso do Kosovo, e o rejeitarem, nos casos do Donbass ou da Crimeia; a Rússia invocar esse mesmo direito, nos casos da Crimeia e do Donbass, apenas quando em seu benefício, rejeitando-o noutras ocasiões.

[14] Ver “Russia outsmarts Western sanctions – and China is paying attention”, The Economist, February 21st, 2024, para mais evidência sobre a relativa ineficácia das sanções.

[15] Este sistema adopta o leasing com opção de compra, como método de financiamento, e, em substituição do dólar americano, utiliza as moedas dos respectivos países – sobretudo o yuan, o rubro e a rupia –, e o ouro nas suas transacções comerciais, enquanto não é criada a sua moeda única (a ser baseada numa cesta das suas próprias moedas, com os pesos específicos destas como função dos pesos relativos das respectivas economias, e matérias-primas com quotação nas bolsas de valor).

[16] A Organização para Cooperação de Shanghai é um agrupamento político, económico e militar da Eurásia, que foi fundado, em 2001 em Shanghai, pelos líderes da China, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão. A Índia e o Paquistão, em 9 de Junho de 2017, e o Irão, em 2023, tornaram-se membros dessa organização, cujo objectivo principal é a cooperação para a segurança ‒ em especial, quanto ao terrorismo, separatismo e extremismo ‒, embora também trate de assuntos económicos e culturais. Nestes domínios, discutiu já a substituição do dólar,  como moeda de pagamento nas transacções internacionais, a formação de um cartel de gás natural e o incentivo ao armamento nuclear dos seus membros.

[17] O Relógio do Juízo Final ou do Apocalipse  (Doomsday Clock, em inglês) é um relógio simbólico, mantido, desde 1947, pelo comité da organização “Boletim dos Cientistas Atómicos da Universidade de Chicago, que indica a quantos minutos está a raça humana da meia-noite, momento da sua destruição por uma guerra nuclear. Em 1947, no início da Guerra Fria, o Relógio marcou o tempo inicial de sete minutos para a meia-noite. Posteriormente, foi sendo ajustado, em intervalos regulares, em função do estado mundial e da perspectiva de uma guerra nuclear; assim, do tempo de 1 minuto e 40 segundos antes da meia-noite, em 23 de Janeiro de 2020, os ponteiros do Relógio foram movidos para 1 minuto e 30 segundos antes da meia-noite, em 24 de Janeiro de 2023.

[18] Do mesmo modo, serão este agente representativo os decisores de política acima referidos!

[19] Que pode ser personificado por Jeffrey Sachs et al – com idênticos carácter e intelectualidade –, que decidem com racionalidade, de modo (assimptoticamente) óptimo.

Enquanto africano, o autor deste artigo subscreve posições tais como a de Jeffrey Sachs. A atitude dos países membros da UE e da OTAN sobre o nazismo e racismo reforçam os argumentos a favor dessa decisão. É que a Resolução A/C.3/75/L.49, das Nações Unidas, datada de 18 de Novembro de 2020, sobre a luta contra a glorificação do nazismo, o neonazismo e outras práticas que contribuam para alimentar as formas contemporâneas de racismo, de discriminação racial, de xenofobia e de intolerância associadas teve votos contra dos EUA e da Ucrânia e abstenções de todos os membros da OTAN e da UE. (http://paginaglobal.blogspot.com/2022/04/a-alianca-do-mi6-reino-unido-da-cia-eua.html).

[20] Note-se, por exemplo, que um inquérito realizado pelo Instituto russo independente de Levada – apesar da criticada eventual ausência de plena liberdade dos inqueridos –, concluiu que 81 por cento dos russos defendiam a intervenção na Ucrânia.

[21] Neste contexto, lideranças humanistas e com visão são uma condição sine qua non para preservação da paz e segurança internacionais.

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